quinta-feira, 31 de março de 2011

Neutralidade



Os tons pastéis não são os que prefiro em meus pincéis
Sou dada às cores fortes e quentes
Aos sabores nobres e ardentes
Aos beijos longos e molhados
Aos desejos viscerais
Aos amores intensos
Aos momentos eternos

Neutralidade nunca foi o meu forte
Para mim é assim: tudo ou tudo
Tudo agora, ou tudo jogado fora
Viver ou deixar para alguém viver por mim?
Opto pela história
qualquer vivência que valha ser guardada na memória
Escolho intensidade
qualquer experiência que seja ao menos de verdade
Mergulho no escuro
qualquer dia descobres que ficar em cima do muro
é pior que conhecer tuas próprias sombras
É preciso saber que sobras não matam a fome
não satisfazem
não enobrecem
não engrandecem




quarta-feira, 30 de março de 2011

Quero Calar

Alguém, por gentileza, cala essas vozes aqui dentro da minha cabeça?!

Você, você aí.
Isso, você mesmo, pode apertar aqui o botãozinho que desliga o meu pensar.
Ah, não está vendo? Não acha o botão?
Espere. Deve estar em algum lugar. Vamos pegar meu manual de instrução. Peraí, vou ver se está no meu armário.
Não, não encontrei.
‘Mããããe, onde você botou o meu manual?’
Como assim não tem manual? Tem que ter. Nem que seja em espanhol, inglês, mandarim, japonês.
Eu tenho um amigo que fala japonês, ele pode traduzir para nós.
Hã?Eu vim sem manual?

Ah,ta entendi. A cegonha deixou cair quando me entregou na porta de casa...
Maldita cegonha, fulaninha incompetente.
Mas deixa, deixa só eu topar com ela. Vai ver só...

Tá e agora?
Tá, foi legal brincar disso.
Foi sim.
Mas e ...?
E aí como faço pra parar de falar agora?
Para calar a minha mente?
Para sair da tua frente?

Quero parar de escrever!
Quero deixar de dizer!

Me sinto tão cansada
Tão farta disso tudo,
cheia de mim,
vazia do resto
Sei lá se eu não presto,
só sei que detesto essa mesmice

Estou Entediada, Enojada, Irritada
Irritada até que não
Não tem Irritação
Essa é emoção forte,
e tudo o que sinto é fraco
É morno, é enjoativo, cansativo, enfadonho
já não sinto o sal, nem o açúcar
já não vejo o sinal...
Procuro desesperadamente o final
e só vejo o lampejo de uma idéia vaga de fuga
e isso me machuca, porque não sei onde buscar
não sei onde encerrar, não sei onde parar
nem sei como calar
só faço falar, falar, falar

Estou cansada...
Cansada de pensar.
Cansada disso tudo.
Farta, eu diria.

terça-feira, 29 de março de 2011

Profecia


Profecia bem feita é a que dá errado.
Se eu a entendo é porque não serve, não me enlouqueceu o suficiente, não me confundiu o bastante.
Poderias me falar o por quê estou te mostrando esse lado?
Se eu bem me lembro, tua fé não crê em nada disso.
Nem gnomos, nem duendes, nem idéias doentes de fadas fantasiadas de gente.
As bruxas para ti não passam de mulheres de narizes grandes e verruguentos.
Ah, meu amado, como te explicar que em meu caldeirão ferve mais que algumas ervas e poções? Como te mostrar que em meu íntimo há muito mais que um desejo avassalador, há vassouras que varrem o mal, que podem te fazer voar para qualquer lugar deste planeta. Há doses cavalares de paixão que cavalgam em mim como unicórnios indômitos. Há tantas luzes e lâmpadas mágicas iluminando este meu peito, que nem o gênio mais habilidoso seria capaz de te levar para as trevas do desamor.

Então,
me mostra o lado real de tudo isso para ver se nele vejo graça.
me ensina a ver em preto e branco para eu sentir o gosto do mundo quadrado que todo mundo vive.
me convence que estou errada em gostar dos enigmas, das esfinges, das falanges de anjos de luz, das miragens do deserto e do oceano.

Senão,
resta-me continuar a minha magia secreta e sagrada
resigno-me a trilhar o vôo das águias solitárias no alto das montanhas, como os xamãs me ensinaram
reensino-me a arte de estar só, imersa em minhas águas, sem nenhuma mágoa, mergulhada no ventre da minha mãe Iemanjá

segunda-feira, 28 de março de 2011

Submersa


Acho que preciso de chocolate. Uma barra inteira. Quem sabe uma banheira cheia dele, onde eu possa submergir, e deixar explodir a sensação de prazer numa tentativa menos intensa, mas essa sim palpável. Ou então, vou procurar algo forte, bem mais forte que tudo isso que tenho vivido. Algo que me acalme os ânimos. Ou instigue-os ainda mais.

Quem sabe é hoje que volto a beber? Sei lá, para saber o que vai mudar... Não sei, mas pode ser verdadeira a mensagem que uma mente entorpecida envia. Quem sabe mais vadia, mais relaxada, eu descubra que não tem muita razão andar nessa estrada tão arrumada, tão encaixada nas ruas da integridade, da sinceridade, da verdade.

domingo, 27 de março de 2011

Inversão

Vamos partir do princípio de que tudo não passa de uma grande e previsível e monótona repetição! A gente tenta burlar, refazer a regra, remontar o texto, inverter papéis, mas tudo acaba chegando naquela famosa e conhecida sensação de que já se viu essa cena antes.
Cria uma realidade alternativa, uma fantasia bem linda e entra ali, travando guerras nos sonhos pra chegar à felicidade sonhada. Inventa castelos, príncipes, princesas e fadas fatidicamente irreais e depois se queixa de não ter entendido o que estava diante dos olhos todo o tempo.
Por que então não simplesmente aceitamos o outro como ele é? Por que, diabos, não nos aceitamos como somos? Por que tantos sonhos se muitas vezes a realidade é tão melhor? O que tem de pior em sentir e experimentar, ao invés de projetar e inventar? Manipular as emoções não é melhor que degustá-las. Então experimentemos trocá-las de lugar, saboreando o que há, o que se tem, o que se pode ter, não o que se pensa querer.

sexta-feira, 25 de março de 2011

Apatia


Ah, mas como me cansei da tua apatia!
Da tua falta de alegria, dessa cara morna
Ta, que eu sempre quis paz, harmonia
Mas pare: é preciso algum vigor!
É preciso mais que amor,
é preciso um tempero
um gosto, um cheiro,
um mundo inteiro de emoção
É preciso algo que mexa,
que cause alguma paixão
qualquer coisa que desestabilize
que deslize pelos lençóis
que escorra pela boca, não pelas mãos
Um toque, um molde de sentimento
uma pitada de esquecimento
É, apagar da mente o mundo lá fora
esquecer que há algo que não o agora
ignorar a dor que foi, o medo que ficou
abrandar os ímpetos da fuga desesperada
acalentar uma alma irrequieta
sobrevoar uma ilha deserta
sentar de perna aberta
desistir de ser esperta

Desisti de jogar
de buscar a resposta
de encontrar a porta
que dá acesso a teus segredos

Procurei me achar
me sintonizar com o mar
ou com qualquer lugar
que me mostrasse que não és tanto assim
que não sabes o começo, tampouco o fim

E entendi que precisas de mais consistência
e, ao mesmo tempo, de muito mais leveza
que precisas entender que se não colocar as cartas na mesa
o vento virá para virá-las - as cartas e a mesa
Não,o tempo não dirá o que tu calas
só teus lábios podem dar vazão a tudo isso
só meus lábios poderão te tirar do juízo
Mas se insistes na previsibilidade,
na falta de interesse e vontade,
farei o que me cabe: retirar-me!
calar-me!
encontrar-me!
amar-me!
E, creia: não é difícil
Não é tão difícil quanto lidar com a mediocridade
com a superficialidade
com a falta de inteireza
com a ausência de certeza
com a lamúria e pobreza de vontade
com a pequeneza que te invade
quando pensas em nós

quinta-feira, 24 de março de 2011

Carta de Alforria


E alguém lá tem certeza de algo nesta vida?

Pode parecer Fuga,
mas prefiro encarar como um Encontro
Pode surgir Dúvida,
mas preciso mergulhar na Busca
Prefiro entender sentindo
Preciso me ver sorrindo
Prefiro chorar de alegria
Preciso molhar a boca
Prefiro buscar,
emocionar,
elucidar
Preciso desancorar
voar
brilhar
Prefiro a tentativa
Preciso de amor

Desisto do paliativo
Cansei do quase
Desisto da promessa
Cansei do se
Desisto do superficial
Cansei do mea-culpa
Desisto do cansaço
Cansei de embaraços

É a Carta de Alforria!

Olho a Beleza deste dia
e me pergunto como não sentir gratidão
como não ter a ilusão de um mundo melhor
como não se questionar sobre o que se fez e faz
Tudo parece tão solto, tão livre, tão calmo e em paz
que até me causa uma certa estranheza
mas acho que é aí mesmo que está a beleza deste momento

Sinto-me leve como o vento
Sinto-me forte como o vento
Sinto-me instável como o vento
Sinto-me livre neste tempo
Sinto-me inteira neste tempo
Sinto-me absoluta neste tempo

Sinto-me, leio-me, permito-me, deleito-me comigo e meus sonhos, meus eus, meus pensamentos, meus anseios, meus medos, minhas inseguranças, minhas certezas, minhas proezas, minhas farpas, minhas teias, minhas meias e sapatos, meus labirintos e instintos.



segunda-feira, 21 de março de 2011

Realeza


Vem ver, ouça os sinos batendo
Vem ler, escrevo nomes no tempo
Sentes? Entendes?
Eu estou a ventar por dentro e por fora
Estou nessa chuva que cai fina esta hora
Vens, ou simplesmente te sentas e ignoras?
Se vem, sorrateiramente  vai embora
sem rastro deixar, sem mágoa, sem dor
sem culpa, sem nem mesmo desculpa furada
nenhuma palavra, todas entaladas
numa garganta congelada, engessada
Como pode tanta frieza?
De onde vem tanta realeza?
Onde estão teus discursos reais?
Quais são teus recursos?
Quais teus meios?
Qual é teu reino, qual é teu medo?
Qual é teu sonho, qual teu segredo?
Qual teu nome, qual teu fim?
Onde estão teus discursos?
Quem és tu, enfim?
Quem és tu,em mim?

domingo, 20 de março de 2011

Cama e Mesa


Foi ali, ali bem perto do fim que começou a minha esperança.
E começou com gosto de lembrança.
E me senti tão adolescente, tão criança.
Mas me senti tua.
E, por isso, tão mulher.

Senti que devia vestir meu melhor vestido, minha lingerie mais sedutora, e depois me despir de tudo.
Me despir do medo, do preconceito, do conceito de amar que até então eu usei.

Cuspir fora de mim tanta projeção falha, tanta mentira acreditada, tanta coisa amassada e enrugada na cara antiga.
Mas ela já não pode ser mantida,já não consegue ser sofrida, poque agora gosta.
Não,não estou presa. Estou acesa. Estou na mesa de véu e grinalda.
Estou na cama, no nosso céu, no nosso mar de esmeralda.

sexta-feira, 18 de março de 2011

Findo Drama



E, se um dia eu então simplesmente cansar de estar aqui a falar tudo que não perdes tempo em ouvir?
E se, um dia, eu desistir de cantar a canção mais lindamente já feita, e embora desfeita, vá bem feliz embora deste lugar?
E se, quem sabe, eu te abandone vilmente, como fizera incansavelmente tantas vezes comigo?
E se, quem sabe, teu abrigo não mais existir? 
Será que te farás ruir? 
Se numa hora dessas, eu simplesmente te vir sorrir de canto e dizer que teu pranto nem um pouco me comove?

Não há músculo que move a face, quando o desenlace já é feito...
Não há peito que dê jeito num pensamento fixo no adeus
Os lábios dantes sedentos, outrora doces, são agora amargos
Desejos ardentes não passam, esta hora, de pequenas sementes de desgosto

Gosto mesmo de saber que não tem mais gosto algum essa tua boca que me olha, com sorriso de canto, superior
Gosto demais de saber que o torpor já não me percorre as entranhas quando me tocas
Que o máximo que sinto são cócegas, lampejos dum corpo habituado às malícias da carne
Que o mínimo que posso fazer por nós é transformar em letras, o pouco que sobrou do quase nada que nos ensinamos e cansamos

Colorido da Vida



Onde reside o colorido da vida?
Como sara a ferida sofrida?
E acaso cala, a palavra tolhida?
Dentro dum peito ela insiste
Dentro d'alma ela é triste
por não mais expressar a leveza
por não mais mergulhar na beleza
dum amor belo e sublime
dum segredo 
De coisas que soam como um crime
De um medo 
que eu sinto
que eu pinto 
com aquelas cores
aquelas que bem sabes
aquelas que penso serem as únicas a existir...

O Meu


As sombras
O breu
A escuridão
O chão
O céu
A mão
O meu
O teu
sem meu 
Sem meio
Com medo
do cheio
do cheiro
do gosto
do oposto da dor
desse novo sabor

Só Seguem


Lama, Chuva, Grama
A manta que me cobre a pele sua gotas de céu
Que beleza tem no toque
Nuvens escuras que salpicam a noite clara
Só reforçam sua luz
Gosto forte de laranja...
sinto a língua quase inteira a sair-me pela boca
quer provar-te
quer beber-te
quer encher-nos de sentidos
quer fazer-nos mais que amigos
quer dizer-nos mais que ouvimos
ou supomos
sem destino, sem certeza, nos amamos
e, após: isso é tudo?
Ambos mudos, pensam e não dizem
Sentem muito, mas a nada se atrevem
E, novamente, seguem
Seguem suas vidas comportadas

Só Eu


Sou só eu só
Assim, do meu jeito assim de ser
Não sei se isso é nobre ou pobre
Preguiçoso, previsível ou honrado
Mas, sei não...
não deve ser assim tão errado

Cigana


Na ponta da tua lança, minha vida dança
No ponto da tua rua, minha vida é crua

Mas o teu feitiço me toma e protege
Sim, sei que sou mestiço e herege

Se tenho cor e sabor
Não posso ser bege!
Não posso fraquejar!
Nada de ser suave,
nada de entrave.
Nada de nada,
só um pouco de tudo.

Um conselho mudo.
Aquele teu jogo de olhar
Aquele arrepio ao som das tuas castanholas
Aquele teu cheiro de rosas e frutas
Aquele teu porte de quem sabe...
Sabe que pra que nada acabe
é preciso sempre um começar.

Na ponta daquele punhal
Naquele instinto visceral
No momento crucial
No tilintar de tuas pulseiras
das tuas frases verdadeiras
a vida fica mais mágica,
a noite fica mais rápida,
a história ganha novo sentido.

Diferente de tudo que já se tenha ouvido
ou vivido
ou prometido
ou cumprido

A Gente Mente

Liberdade pra sentir
Intensidade pra exprimir
Ou seria o inverso?
Ou tudo simultaneamente?
Ah,não,fica controverso.
Então a gente mente!
Isso,isso: a gente mente!
É mais fácil, dizem
É mais tradicional, ao menos
É mais banal, pequeno
ah, é sim!
Mas banal é bom, dizem
Dizem os sem criatividade
Dizem os previsíveis
ou os cansados
os fadados à mesmice
os conformados.
Não me conformo tão fácil
Não me escondo mais
Não me privo
Não te sigo, mas também não fujo
Eu vou, eu vôo
Eu pensei: nem sei...

Ponto Exato



Sinto que estou chegando no ponto exato
Onde nem o fato nem o tato 
são capazes de resumir
o que nasce, o que morre
o que se planta, o que escorre

Mergulhar sem escorregar
nas linhas fundas do sentir
é perda de tempo
é venda nos olhos
é tentativa vã de congelar o fogo
é expectativa torpe de fazer um jogo

Mas e se eu te dissesse que o tempo do ensaio, é na verdade o jogo jogado?
Que não há limites, não há certo, tampouco errado?

Máscaras



Fiquei ali por horas olhando a minha própria cara no espelho da vida

A minha própria cara me pareceu tão imprópria nessa hora...
Como tirar a máscara da tristeza se nem ao menos sei como ela foi parar ali?
Oh, eu que tanto batia no peito afirmando não usar máscara alguma,
agora preciso duma plástica pra reconfigurar minha face
Será que preciso de novos disfarces?
Sei lá, talvez só precise desenlaces...

Festa?


É isso então?
Uma festa?
Uma mescla
de sonhos
e bolos
e contos
e fatos tolos
emaranhados
impermanentes
descontentes

Ou será só comemoração?
Alguma atenção a uns poucos momentos
Alucinação e alguns pensamentos a esmo?

Pode ser, vai saber...

O que são?



E o que são, de fato, todas essas constâncias da vida que eu não vi passar?
Tudo tão avassalador, às vezes
Terrivelmente tentador
Um instante se passa e 
Tudo é tão enfadonho
cansativo
sem graça
sem pressa
sem vontade de ser o que quer que seja ...

Caminhos





Eu sou da estrada, da fogueira
Não tenho nada, nem bandeira
Sigo a história, a minha
Sigo a intuição, a impressão
Não tenho ilusão, porque nada espero
Não tenho profissão, faço o que quero

Orgulho no rosto.
Vento no rosto.
Mergulho no gosto dos caminhos novos
Pergunto pros moços se ficarão velhos
se sonham continuar,
se trilharão rumo ao mar
ou se ficarão na margem
ou se partirão para o cais
ou para trás

Não sou Inha


'Ai, que belinha!'
dizem uns.

'Oh, bonequinha!'
falam outros.

Não percebem que sou outra?

Eu Vejo



Eu sei qual é o teu destino
Estimo melhoras
Sinto pioras emergindo
Mas farei preces para te proteger
Enaltecerei aos santos tuas qualidades
e nunca mais chegarão a ti maldades
Farei uma reza cheia de cuidados
Falarei de teus predicados
de tuas angústias e penúrias
de tempos idos, de lamúrias
de tanta luta, tanta história
de alguma merecida vitória

Uma vez atendidos os meus pedidos
feitos aos teus anjos e meus guias
pedirei então a ti, não mais por ti
Sim, a ti pedirei que peças por mim
Não, não precisas falar com Eles
Esse papel sempre executei com destreza
Preciso que fales é com teu próprio coração
que dês certeza à minha suposição
que tragas leveza à minha inquietação

Sou dona dos caminhos
Soo sinos e badalos
Leio mãos e baralhos
Danço e canto
Fujo e persigo
Mas não consigo ignorar o que me causas
Não consigo esperar tão longas pausas

Talvez Nem Quisesse...



E ela, que já nem cabia em si de tanta dor, desabou. Tá, que nem sabia se era amor. Mas o quase-amor também é capaz de estraçalhar corações. Ainda que pelo tempo de um verão, ou um pedacinho dele, sentiu novamente a brisa quente do que se diz ser um sentimento envolvente. Nada de tão inédito, nada de tão eloqüente, mas não deixava de ter um que de ardente. Misturados aos ramos do desejo, uns dois ou três galhinhos de gentileza, carinho e uns quatro ou cinco de afinidade que houvera entre eles.

Tá, tá. Mas daí pensou: ‘Fim, de março é o fim do verão?’. Não sabia e ficou com preguiça de pegar o calendário lá na cozinha. Naquela tarde lhe pareceu melhor ficar sentada na varanda esperando o dia – ou o mundo – finalmente terminar. Pegou a xícara de chá debaixo da rede, e mesmo notando que nem mais morna estava, sorveu um gole, e depois outro. Embalou-se ali por minutos, quem sabe horas. E lentamente sentiu a brisa volvendo-lhe os cabelos. E, pouco a pouco, sentiu que o sono a vencia. Adormecera. E dormiu um daqueles sonos profundos. Achava até que tinha sonhado. Mas por que, raios, nunca conseguia recordar dos sonhos? No máximo entrevia recortes pelas frestas da memória e lembranças vagas num breu estranho, perdidas no meio de um cérebro confuso a projetar imagens desconexas.

Sem saber se era ou não verão, ela acordou e escolheu que seria inverno. Escolheu ela mesma ser o próprio inverno. Pronto! Serei fria. Fria, não. Gelada mesmo. E foi assim seguindo o fluxo incoerente dos meses, que teimam em correr ou empacar, conforme lhes convém. No inferno astral do mês de agosto ela escolheu não mais morrer de desgosto. Lançou-se então ao gosto torpe do sexo profano, do homem mediano, que não tem sal, mas ao menos não a faz adoecer, nem padecer no dia seguinte. Entregava-se a ele olhando para o teto, sentindo prazer na carne, mas não na alma. Será mesmo que tinha alma? Nem se lembrava. E como era isso de gostar mesmo? ‘Esquece’, pensava. Isso já não importa mais agora. Vamos cair nos braços do lindo moreno, que neste momento fazia mil acrobacias a fim de chamar-lhe a atenção e quem sabe ganhar algum espaço na sua vida, pois que até agora só ganhara em sua cama. Mas  ela sequer percebia as intenções do pobre rapaz, nem o julgava capaz de pensamentos, quem dirá de intenções, que são os pensamentos seguindo rumo de um planejamento. E foi levando aquela vidinha leviana, alimentando aquela paixão(?) vadia que nem mesmo ardia em seu peito. Mas ao menos tinha desfeito o pensamento fixo naquele que nem pensamento tinha nela, naquele que nem sequer, não, não pensava sequer em voltar no verão seguinte.

E os dias correndo. Lentos, às vezes. Noutras, acelerado. O tempo vinha mostrando a ela que um coração dilacerado não se cura com melindres. Não sara com fugas. Não te deixa fugir das rugas que o semblante cisma em ostentar com certo ódio e satisfação. Então ela se enchia de cremes e se enfiava debaixo dos lençóis gelados. E pensava quando então teria fim aquele dilema? Sei lá, talvez nem tivesse. Ou talvez ela nem quisesse, pensava. Que graça teria, agora que já estava tão habituada aos devaneios noturnos, deitar e ler seu livrinho de cabeceira?